Maestro Elias Lobo, 653 e o dia em que São Paulo matou o ballet clássico

por Thaís Resende Gondar, quinta, 28 de Junho de 2012


É com muita tristeza que venho aqui dividir meu luto.

Hoje a São Paulo que proibe a distribuição de comida a moradores de rua, a São Paulo que destrói seu patrimônio arquitetônico com empreendimentos imobiliários faraônicos, a mesma São Paulo que entope ruas de carros e fumaça, a mesma São Paulo que atropela ciclistas e motoqueiros, aquela que cria vergonhosas rampas antimendigos, não oferece transporte público digno e comete homicídios contra homossexuais, foi ela mesma a responsável por fechar mais uma de suas escolas de ballet.

O estúdio Kitty Bodeheim, há 60 anos locado na Rua Maestro Elias Lobo, fechou hoje suas portas. Uma lei de zoneamento, que divide a cidade em bairros residenciais de ricos e guetos industriais de pobres, foi determinante na ação da Subprefeitura de Pinheiros em lacrar, para todo sempre, o local em que não só bailarinos, mas seres humanos foram formados.

Dança é muito mais que arte. Dança é estilo de vida. Várias gerações aprenderam com Dona Kitty pliés, arabesques, fouettés e também o verdadeiro sentido da amizade, da disciplina e do comprometimento. Valores que não se encontra mais nem na São Paulo que matou a escola e nem em qualquer outro lugar.

Não conheci Dona Kitty pessoalmente. Quando cheguei à escola, ela já havia falecido. Mas seu legado é tão forte que sua presença é viva em cada uma das pessoas com quem dividi a barra, o centro e meus últimos dois anos. Uma germânica a frente de seu tempo, inteligentíssima e com a capacidade de retirar o melhor de cada aluno. Ouvi pouco, mas o suficiente pra entender que a família que ela criou foi a mesma que me acolheu e retirou toda neura de insistir no ballet mesmo após os 30 anos e mesmo com alguns centímetros a mais de coxa. Porque dança não é corpo, dança é alma!



Hoje, São Paulo, você deixou órfãs gerações e gerações de bailarinos e professores de ballet que exerciam sua prática sem incomodar absolutamente ninguém. O maior incômodo talvez fosse apenas o som do piano. Porque sim... o estúdio Kitty Bodeheim era a última de suas escolas que ainda mantinha pianistas em salas de aula.

Hoje, São Paulo, você simplesmente deu as costas às maiores bailarinas e mestres que a cidade já formou: Neyde Rossi e Ady Ador. Elas deram suor e sangue pela dança da cidade e em troca as presenteou com a dificuldade em alugar espaços decentes por montantes exorbitantes que atividades culturais não conseguem bancar. Isso, se espaços decentes existissem por aqui!

Hoje, São Paulo, você confiscou o prazer e a satisfação de pessoas digníssimas como a Sandra que enxergam na dança sentido de vida e inspiram pessoas.

Hoje, São Paulo, você me envergonhou e me entristeceu. Mas como bailarina disciplinada, permanecerei firme e insistindo para que você seja mais humana e gentil para com aqueles que vivem por você.

Amigos e amigas da Dona Kitty, vocês que dividem o mesmo sentimento que eu, compartilhem esta mensagem. Se o que ficou hoje foi um sentimento de injustiça, vamos pelo menos usar nossa voz como registro desse absurdo. Restou-nos pouca ou nenhuma força para mudar a situação, mas é preciso falar! Muito obrigada!

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A Thaís Resende Gondar é dona do Ponta Perfeita e uma das pessoas que ainda valorizam exatamente o que tem valor. Ela publicou esta nota hoje em seu Facebook. Vamos divulgar, bailarin@s!

Comentários

Thaís disse…
Obrigada por dividir seu espaço, querida! Tamo junto nessa causa!
Beijos!

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